Coloquei mais força nos pedais da bicicleta para deixar para trás a rua que dividia os mortos. Eu tinha acabado de descobrir, no cemitério perto de casa, em Carthage, Missouri, que de um lado da rua enterravam os brancos e do outro os negros. Em 1972, aos 16 anos, segregação assim era novidade para mim.
Eu sei que no Brasil existia, só que não amparada por lei ou religião. Nos EUA a segregação tinha sido abolida no papel dois anos antes, mas continuava na prática. Na McAuley High School, escola particular católica onde eu estudava, não encontrei um aluno negro.
A supremacia branca, defendida por alguns cristãos norte-americanos, teve sua origem na mitologia pagã anglo-saxônica e influenciou o pensamento de personalidades tão diferentes quanto Hitler, Monteiro Lobato e Allan Kardec. Mas na Roma de Constantino a mistura de elementos cristãos e pagãos já era incentivada, visando homogeneizar a religião no império. Quem visita o Vaticano encontra imagens que nada mais são do que representações ou estátuas recicladas de deuses pagãos, como a de Júpiter, que ocupa o lugar de São Pedro.
A segregação também tem o respaldo de interpretações equivocadas da Bíblia, em especial da história dos filhos de Noé. Séculos antes de católicos e protestantes usarem seu texto para endossar práticas escravagistas, judeus e muçulmanos já interpretavam o Antigo Testamento assim. Os árabes foram os primeiros a escravizar negros etíopes, criando um precedente para a escravidão ditada pela cor da pele.
A própria Bíblia coloca em xeque essas interpretações, quando descobrimos que a esposa de Moisés era negra. O bebê Moisés foi salvo das águas por uma princesa egípcia, cuja aparência estava mais para a da irmã de Barack Obama do que para a holandesa Nina Foch, que interpretou a princesa no hollywoodiano "Os Dez Mandamentos" de Cecil B. DeMille. E não podemos nos esquecer de que José, Maria e o bebê Jesus encontraram abrigo entre os habitantes do norte da África.
Mas o maior embaraço para qualquer caucasiano que pretenda usar a Bíblia para justificar a supremacia branca está na história da conversão do eunuco, oficial da rainha da Etiópia, no livro de Atos. O primeiro não-judeu a se converter à fé cristã e a propagar o cristianismo na África foi um negro. Numa época quando os bárbaros brancos da Europa ainda ofereciam sacrifícios humanos aos seus deuses, muitos africanos já falavam de Jesus.
A eleição de Barack Hussein Obama à presidência da maior potência do planeta muda muita coisa. Para começar, será preciso rever alguns conceitos de marca e pesquisas de opinião. Há alguns anos qualquer pesquisa daria como zero a probabilidade de um negro ser presidente dos EUA.
Depois do 11 de setembro, então, alguém chamado Hussein ou Obama tinha mais chances de ir parar em Guantánamo do que na Casa Branca. Ora, os norte-americanos chegaram até a boicotar a mostarda French's, só porque os franceses não apoiaram a invasão do Iraque. A questão é que "French" não vem de "francês", mas é o sobrenome do criador da marca norte-americana de temperos.
O primeiro desafio de Obama foi vencer a segregação dos brancos. Agora vai precisar vencer a decepção de alguns negros que esperam uma reversão no tratamento preferencial. Ralph Nader, o perdedor independente, já insinuou que Obama está mais para "Uncle Tom" do que para "Uncle Sam". Lá a expressão "Uncle Tom" é pejorativa, e significa um negro subserviente ao domínio do branco.
Venha o que vier, acho que Abraham Lincoln teria gostado de viver estes dias. Ele, que combatia a escravidão, um dia encontrou um político que reclamou de suas idéias. Lincoln argumentou mais ou menos assim:
"Se você diz que o de pele mais clara pode escravizar o de pele mais escura, é melhor tomar cuidado. Você pode acabar escravo do primeiro que encontrar que tiver a pele mais clara do que a sua. Se não for apenas uma questão de cor, mas de superioridade intelectual, que você acredita ser característica dos brancos, então você pode acabar escravizado por alguém mais inteligente do que você."
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A Audácia da Esperança - Barack Obama O senador democrata Barack Obama, eleito no final de 2008 presidente dos Estados Unidos analisa o governo Bush, a vida política atual no seu país, a atuação do Congresso, as tensões religiosas e raciais, a intervenção norte-americana no Iraque e também outras questões mundiais, como o terrorismo e as pandemias nas páginas desta magnífica obra. Apesar de não ser exatamente uma autobiografia, a trajetória e experiência do senador também é exposta. Conheça um pouco mais sobre as idéias deste homem que em 2009 será o presidente do país mais poderoso do mundo. |