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Encantamento

O apito do navio é de tirar o fôlego. Forte, grave, resoluto. Um momento mágico. Ser embalado por aquele gigante de aço, enquanto a cidade encolhe no horizonte, traz um misto de fragilidade e poder. Sou um príncipe e o conto de fadas agora é aqui. Será que aquilo ali é um sapatinho de cristal? A fantasia está só começando.

Cercados de espelhos e cortesias, os passageiros se sentem contemplados com uma dignidade que a vida diária costuma lhes negar. Desdobram-se em mesuras nos corredores e elevadores, todos limpos, lindos e polidos, como o corrimão dourado das escadas que levam aos andares-surpresa daquele palácio.

O ambiente tem um papel essencial no encantamento, seja num navio, shopping ou botequim. Mas qualidade, eficiência e perfeição não bastam. Enquanto o botequim fica cheio de gente que precisa escolher o lado limpo do copo, o barzinho chique fica vazio. Ambiente não é soma de características, é conjunção.

Coloque duas mil pessoas confinadas num navio, com uma decoração de um luxo que beira a breguice, e você satisfaz um espectro que vai do chinelão ao cromo alemão. Entuche comida às arrobas, esconda a balança e crie danças comandadas, e uma legião de glutões dormentes e obedientes vão sorrir contentes. O que essa conjunção tem a ver com você? Tudo.

Alimente bem seu cliente e você terá um exemplar dócil à sua frente. De pedidos de noivado a jantares de negócios, o encantamento à mesa quebra a resistência, a bebida amortece e a sobremesa dociliza na hora de acatar a proposta. Só não coma mais do que o outro, ou o dócil será você.

A equipe também é importante no encantamento. No navio, os cargos culinários têm sotaque italiano, as dançarinas soam argentinas e as mesas são servidas por gentis orientais. Experimente trocar por britânicos, alemães e franceses, nesta ordem, para ver se funciona. Enquanto isso, os passageiros são assados no deck ao som de Ivete Sangalo, porque ritmo é importante.

O ritmo embala e seduz, e não é à toa que uso o truque das três palavras em meus textos. "Forte, grave e resoluto". Todos nós temos um relógio interno e funcionamos melhor com ritmo, tanto para estimular como para ninar.

Shakespeare escrevia no compasso do coração. As rimas trissilábicas do primeiro livro infantil do Dr. Seuss foram escritas no porão de um navio no ritmo dos pistões. Roberto Menescal tentava dar partida num barquinho à deriva na Baía de Guanabara e o motor só fazia "Tá-tá-tá-tá... Tá-tá-tá-tá..." e morria. Enquanto era rebocado para a praia, Menescal transformava aquele "Tá-tá-tá-tá... Tá-tá-tá-tá" na melodia de "Di-a-de-luz... fes-ta-de-sol..."

Recapitulando: Um misto de fragilidade, para se deixar levar, e poderio para achar que está levando. Uma dignidade real que a vida costuma negar. Uma conjunção de fatores que satisfaça um amplo espectro de desejos. Deleite físico e mental para desarmar e docilizar. Serviços com os sotaques que os clientes esperam que tenham. E ritmo, muito ritmo, trazendo todos sob a batuta de um maestro invisível.

A cena muda...

Estou agora em um salão enorme. Duas mil pessoas com suas malas desembarcadas se digladiam para sair por uma porta estreita. A sensação é de pasta de dente. Esqueço a pasta quando sinto o bafo quente e barulhento do cais. Logo adiante uma mulher agarra o companheiro pelo colarinho e senta a mão em sua cara. Será que pegou o marido com a mala da outra?

Depois de morar na fila do táxi, chega a vez do casal à minha frente bater boca com o taxista que cobra preço fixo e não vai pelo taxímetro. Quem passou uma semana tomando cerveja em dólar, agora discute por uma diferença do tamanho de uma latinha. Pego o táxi que o casal recusou e pergunto ao motorista se aquela balbúrdia no desembarque é normal.

-- O senhor não viu nada. Semana passada duas mulheres saíram no tapa por causa de um lugar na fila. Coisa feia, de arrancar cabelo e pele na unha. Foi preciso apartar.

Enquanto o carro dribla o trânsito para escapar do cais, olho para trás. O navio não está mais lá. Em seu lugar há uma imensa abóbora. A fantasia acabou. O sapato de cristal desapareceu de minhas mãos.

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Se Disney Administrasse Seu Hospital: 9 1/2 Coisas que Você Mudaria - Fred Lee
Livro obrigatório para quem trabalha com serviços. Fred Lee reuniu sua experiência como executivo em hospitais e uma passagem pelas organizações Disney para mostrar que o atendimento atencioso e singular gera lealdade e admiração pelas empresas capazes de prestá-lo.
Editora: Artmed
Autor: FRED LEE
ISBN: 9788577803705
Origem: Nacional
Ano: 2009
Edição: 1
Número de páginas: 212
Acabamento: Brochura
Formato: Médio



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E a gorjeta, doutor?

Incontestavel contexto

Meu neurologista ligou para dar duas notícias. Boas ou más? Depende. A primeira foi que eu não tenho nada na cabeça. A segunda, que leu algo sobre mim em algum lugar. Ouvir que não tenho nada na cabeça ou saber que meu nome saiu em algum lugar não é suficiente. Preciso conhecer o contexto.

Se eu fosse laranja de alguém e me dissessem que meu nome apareceu no jornal, não ficaria contente, mas apreensivo. Se fosse outro que me dissesse que não tenho nada na cabeça eu ficaria ofendido. Mas como veio do neurologista, de quem eu aguardava o resultado de um exame, que também diz que viu uma citação minha em um livro de marketing médico, já posso soltar rojão.

Conhecer o contexto é vital na comunicação, pois nunca sabemos o que uma partícula de nossa mensagem pode causar quando atinge um contexto desconhecido. Hoje, por exemplo, recebi um e-mail de um que não é meu neurologista, mas quis dar uma segunda opinião:

"Fico abismado com a cultura acima do normal e o conhecimento que o senhor tem. Mas fico mais triste em saber que o senhor não tem foco em sua vida. Aparentemente, salvo melhor juízo, o senhor é um oportunista, 'chavequista' e aproveitador de mentes. Sua administração cerebral não é das mais honestas."

Meu dicionário não tem "chavequista", mas tem "xaveco", que é "comportamento imoral, criminoso e cínico". Será que algo que eu escrevi gerou aquela reação por causa do contexto ou do mérito da questão? É comum alguém que só viu o rabo do elefante achar que o animal seja um pincel.

Alguém mal informado pode querer agradar outro que pegou febre amarela com o elogio: "bonita cor". Alguns, com filhos pequenos no contexto moral de sua sala, podem querer a censura de programas carregados de sexo, dinheiro e poder. Outros podem nem ligar que seus pequenos assistam à sessão da tarde da TV Senado em lugar do desenho animado.

O contexto também muda com o passar do tempo. Em 1903 dois obscuros mecânicos de bicicletas de sobrenome Wright fizeram um vôo secreto e o jornal de sua cidade natal, o Dayton Daily News, noticiou assim:

"RAPAZES DE DAYTON EMULAM O GRANDE SANTOS-DUMONT"

Como vocabulário também cria contexto, algum leitor menos versado pode achar que os irmãos Wright chamaram Santos-Dumont de ‘mula’. Nada disso. O jornal disse que eles 'imitaram' "o grande Santos-Dumont".

Grande Santos-Dumont? Num jornal americano? Sim, o jornal achou que o vôo secreto tinha sido em um dirigível, e na época todo mundo sabia que o milionário brasileiro que vivia em Paris e não perdia uma festa no Castelo de Caras era o Ayrton Senna dos dirigíveis.

Se perguntar hoje a um repórter do mesmo jornal é capaz de receber um "Santos-Quem?" como resposta. É que agora até a versão americana da enciclopédia Encarta traz os irmãos Wright como inventores do avião e Santos-Dumont como... ué, devia estar por aqui...

Não sei o que diz a versão brasileira, mas sei que a Microsoft criou diferentes versões para agradar a gregos, troianos e italianos. Nesta última o inventor do telefone é Antonio Meucci, e não o Graham Bell da versão americana. Enquanto na americana Thomas Edison inventa a lâmpada só, na versão britânica ele ganha um coadjuvante, o britânico Joseph Swan.

A Microsoft sabe que se não levar em conta o contexto do cliente ele descarta sua Encarta. O mesmo acontece na comunicação. Se o que eu disser não encontrar um par no contexto do universo de meu interlocutor, cuspi palavras ao vento. Aconteceu comigo esta semana.

Quando vi, de primeira mão, meu sexto livro numa vitrine, não resisti. Comprei um. Na hora de pagar, meu ego me garantiu que era impossível um escritor como eu não fazer parte do contexto de um funcionário de livraria. Por isso, para brincar, perguntei ao rapaz se o livro era bom, achando que ele me reconheceria pelo nome no cartão.

Não sei por que ainda escuto meu ego. A resposta do rapaz me fez ver que eu ainda não fazia parte de seu contexto.

-- Não conheço o autor. Mas o livro deve ser bom, porque o prefácio é do Max Gehringer. Os livros dele eu li e são bons.



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