Não ligo para carro, não leio revista especializada e não sou apaixonado pelo meu. É claro que ele facilita minha vida e passo horas sentado ali, mas seria isso motivo para paixão? Meu vaso sanitário também facilita minha vida, passo horas sentado ali, e até gosto de ler quando estou nele. Mas não revistas sobre privadas.
Eu achava que esse desinteresse por carros fosse coisa só minha, mas tem mais gente assim. Há alguns meses, na busca por um carro novo, o vendedor de uma concessionária ficou surpreso quando não me interessei em fazer um test-drive. Tinha rodas, portanto devia andar. Dispensei até a abertura do capô. Eu tinha certeza que o motor estava lá. Tem gente que pede para abrir, mas se colocarem ali um aspirador de pó a maioria não vai notar a diferença.
O vendedor contou que profissionais de criação, publicitários e artistas são assim, costumam não ligar para motor, câmbio, transmissão... Concentram-se no projeto, na funcionalidade e no conjunto estético da obra. Bem, o vendedor não falou bonito assim, eu inventei. Mas foi o que ele quis dizer.
Fazia sentido, pois saí dali sem comprar aquele modelo por falha no projeto. Os retrovisores externos eram grandes e fixos. Não escamoteavam, só quebravam, e no planeta onde habito há uma espécie chamada motoboy.
Apesar de não ligar para carro, meu coração disparou quando o manobrista do hotel anunciou com cara de espanto:
- Senhor, seu carro sumiu!
Escutar isso a 300 quilômetros de casa não é o que um cliente espera. No meu caso, nem tanto pelo carro, mas pelo tempo que iria perder com polícia, seguradora e acidez estomacal. As recepcionistas me encaravam petrificadas. Pareciam esperar pela minha explosão, como é normal quando o hotel deixa roubarem seu carro.
Resisti. Sou do tipo que acredita que tudo tem uma razão de ser. Estaria eu sendo poupado de algum acidente? Seria aquilo para eu aprender a ser paciente? Ou só para ter assunto para esta crônica? Não sei.
Também resisti à tentação de comentar o problema com as pessoas ao redor, como muitos adoram fazer. Já passou por isso? O cara se vira para você na fila e repete tudo o que você ouviu ele dizer para a balconista. Ele espera que você faça cara de simpatizante, como se isso fosse resolver alguma coisa.
Isso acontece no intervalo, quando a balconista desaparece dizendo que vai chamar a pessoa responsável. Pura técnica para esvaziar fígados. O cara vai contar a mesma história duzentas vezes, e cada balconista vai chamar outra até ele ficar afônico.
Por isso aguardei em silêncio. Teria o meu carro sido roubado na frente do hotel na noite anterior? Era possível. Cheguei tarde e entreguei a chave no balcão. Ou foi surrupiado da garagem? Era o que tentavam descobrir, mas erraram ao me envolver na busca.
O cliente não precisa saber o que acontece nos bastidores. Já pensou um restaurante com transmissão direta da cozinha? "Senhora, neste momento estamos lavando a alface de sua salada. Já providenciamos a remoção das lesmas e lagartas. A salada aguarda apenas o Zezinho voltar do banheiro para ser montada..."
Em minhas palestras, me tranqüiliza saber que o público não conhece os detalhes de minha apresentação. Portanto nunca vai saber se eu esqueci de dizer algo, se o tempo não deu para falar tudo, ou se vesti a cueca no avesso. Eles não sabem, eu não digo.
Bastidores são lugares reservados para os problemas. O cliente jamais deve ser levado ali. O que importa é o que acontece no palco. E no palco eu era interrogado mais uma vez:
- Marca do carro?
- Peugeot.
- Cor?
- Prata
- Cor?
- Prata
- Placa?
- Cinza com letras pretas.
Achando que aquilo seria a solução para o problema, o manobrista levou-me até a garagem para que eu não visse o carro com meus próprios olhos.
Realmente não estava lá, mas não precisava ter me levado. Como também não precisava dizer que meu carro tinha sumido. O atendimento devia guardar silêncio sobre o problema até serem esgotadas todas as possibilidades de solução.
Mais tarde, enquanto dirigia meu carro de volta para casa, fiquei ponderando sobre o assunto. O silêncio é uma ferramenta poderosa. No atendimento pode evitar entornar o caldo que ainda não está no ponto. Na oratória ele é usado na forma de pausas para realçar o que está sendo dito. Numa crônica como esta, cria um suspense e deixa o leitor morrendo de vontade de saber onde estava meu carro.
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