Uma pessoa que nasceu em 1991, e não sabe o que é viver sob um regime militar, me escreveu perguntando como teria sido minha vida naquela época. Fez bem em perguntar, porque a maioria dos que hoje vivem protestando nas redes sociais sequer existiam naqueles ano,s e seu protesto costuma ser fomentado mais por terceiros de terceiros, alguns deles simpatizantes da guerrilha armada que na época era contra o regime. A mesma que depois engordaria sem regime no comando do país.
Eu não saberia falar de diferenças de antes do regime militar, pois nasci em 1955. Mas eu me lembro quando, em 1964 e aos 9 anos de idade, via meu pai grudado no rádio para escutar as notícias, que depois ele me explicava. O que entendi foi que o país ficou à beira de ser transformado numa Cuba gigante, quando a Venezuela ainda não era modelo de sucesso do socialismo. Recordo da época que meu pai foi ao armazém e encheu nossa despensa para o caso de começar uma revolução.
Hoje sabemos mais, como por exemplo que a esquadra americana estava pronta para surfar de botas na praia de Copacabana, caso os militares não tomassem o poder. Felizmente não aconteceu, nem invasão comunista, nem americana. Ao menos naquele momento, pois os americanos invadiriam anos depois com McDonald's, Nike, Levis, Xerox etc., e depois seriam invadidos pela China.
Eu me lembro dos comentários em casa sobre uma uma caça aos simpatizantes de ideias socialistas e comunistas, mas acho que aconteceu mais entre o pessoal ligado à política. Como meus pais não se envolviam, nada aconteceu conosco. Em minha cidade sei de alguns que foram investigados e interrogados, geralmente vereadores, mas nenhum foi morto ou torturado, ao menos que eu saiba.
Nos tempos de ginásio e colegial eu nem sei se havia alguma diferença, mas sei que era muito mais seguro de se viver, talvez porque polícia e militares eram temidos e respeitados por todos. Andar de uniforme ou farda era motivo de orgulho, e nenhum policial precisava secar a farda dentro de casa para não ser vista no varal, e nem sair à paisana para o serviço para não ser morto por bandidos.
Na escola a única coisa chata era estudar OSPB, Organização Social e Política do Brasil, que não existia antes. E na escola também era obrigatório usar uniforme, ficar em pé quando o professor entrava na sala e marchar no 7 de Setembro. Mas o ensino que tive, primeiro no ensino básico municipal, e depois num colégio estadual, foi dos melhores. Reparou que sei ler e escrever?
Na faculdade percebi um pouco mais o que era viver em um regime militar. Além das receitas de doces e salgados, que apareciam na primeira página do jornal O Estado de São Paulo, para ocupar o vazio do que tinha sido cortado pelos censores na redação, todos sabíamos que era proibido fazer manifestações públicas, colocar bombas em quartéis e assaltar bancos para comprar armas. Como todo universitário, eu contra tudo e todos. Na faculdade OSPB virou COSPB - Contra a Organização Social e Política do Brasil.
Quando um estudante foi preso em São Paulo por distribuir panfletos anti-governo, promovemos uma paralisação na faculdade e uma assembleia para exigir a liberdade de pensamento e manifestação. Eu, que ainda era bobo o suficiente para ser maria-vai-com-as-outras, aderi ao movimento. No dia da assembleia, sentei-me ao lado da líder, que usava coturno e boina com estrela vermelha, mas não barba. Eu achava o máximo sua iniciativa e coragem de querer transformar o Brasil em Cuba. Ou na Venezuela do futuro.
Quando vieram avisar que duas alunas se recusavam a sair da classe, e o professor daria aula se tivesse alguém na sala, essa líder ficou vermelha da cor da estrelinha e berrou: "NÃO PODE! ARRANQUEM ELAS NEM QUE SEJA À FORÇA!!!". Aí caiu minha ficha e eu caí fora de meus breves espasmos de esquerda. Como manifestar em prol da liberdade arrancando à força quem não concordasse? Não fazia sentido e fui lutar em outra frente, a do ativismo ambiental.
Chapado de idealismo, saí de Santos e da faculdade de Arquitetura e Urbanismo determinado a mudar o mundo. Eu pretendia fazer isso indo morar no mato e vivendo como um revolucionário natureba ligado, militante do Partido Macrobiótico. Isso mesmo, me alistei na guerrilha do tofú, armado de ohashi e promovendo atentados com bomba de gersal e napalm de ban-chá. Os prisioneiros que não morriam de anemia, carência de proteínas ou falência renal de tanto shoyu, eram torturados com agulhas de acupuntura e envenenados com incenso.
Com uma Kombi cheia de tralhas, fui morar com minha recém casada esposa no meio do mato em Alto Paraíso de Goiás. Além de plantar horta e criar galinhas, lecionamos durante três anos num colégio estadual, onde havia também um casal de jornalistas de Santos, menos radicais que nós. Você acha que ser professor numa cidade de setecentos habitantes na Chapada dos Veadeiros não dava status? Engano seu. Éramos famosos ali e na capital do estado.
Um dia o governador Ary Valadão fez uma escala no local com seu avião e não tinha nenhuma autoridade da cidade para recebê-lo. Prefeito e vice prefeito estavam fora, então foram me chamar para recepcionar o homem. Quando entrei na salinha do hotel onde serviam café com doce de marmelo, o governador olhou com estranheza para aquele rapaz magrinho de dar dó, com camiseta tamanho "P" folgada e jeans rasgada. Perguntou: "Quem é você?". "Meu nome é Mario Persona e ...". Ele nem me deixou completar a frase. "Ah, você é um daqueles universitários que vieram de Santos para lecionar na escola... sei... sei...".
Anos mais tarde eu entenderia o que tinha se passado naquela cena bizarra. Antes mesmo do Facebook, Youtube e Twitter nosso nome já era conhecido de uma rede social da época conhecida po
SNI, o Serviço Nacional de Informações, criado em 1964. Exceto pelo pessoal do Projeto Rondon, pessoas saídas da faculdade para morar em lugares isolados eram suspeitos. Soube anos mais tarde que na época a guerrilha do Araguaia rolava ali ao lado, e o serviço de inteligência do governo monitorava as moscas brancas estranhas ao ambiente.
Numa cidade com apenas um nativo com curso superior, que era o dentista local, a chegada de quatro universitários fazia o alarme soar. Se ainda fossem advogados, médicos ou engenheiros, tudo bem. Mas dois jornalistas, um arquiteto e uma artista plástica? Todos formados em cursos de Humanas? Fala sério!
Em 1986 voltei a Alto Paraíso para uma visita de final de semana e conheci um rapaz que estava morando lá e dizia ter sido torturado pelo exército na região do Araguaia. Ele mostrou a coxa, toda cheia de cicatrizes de queimaduras. Queriam que ele confessasse fazer parte da guerrilha, mas ele jurou que só tinha ido lá para vender carnês do Baú da Felicidade.
No final dos anos 80 tive um colega que tinha servido num quartel de São Paulo para onde levavam os presos políticos para bater papo e outras coisas. Esse colega nunca participou, mas contou que dava para ouvir os gritos. Então pode ter certeza de que aconteceram sim prisões, torturas e mortes de pessoas ligadas à guerrilha armada ou apenas suspeitas. Quem não estava ligado à guerrilha ou movimentos simpatizantes pouco sabia.
Toda brutalidade é condenável, mas é também o chamado "dano colateral" das guerras, e o Brasil estava em guerra contra os terroristas. Numa guerra não se atiram flores, e sim balas de verdade. Há quem diga que violência se combate com livros, mas não foi com livros que Marx, Lenin, Engels, Gramsci e outros iniciaram sua revolução violentando as mentes de milhões? A truculência física viria depois, com Stalin, Fidel, Che, Mao, Pol Pot, Kim Jong-sum e suas crias.
Muita coisa mudou desde então. Terroristas agora fingem ter motivação religiosa islâmica e no Brasil a guerra é contra o narcotráfico, onde o governo perde por dificuldade de comunicação. Não consegue explicar aos traficantes e ao crime organizado que brincar do jeito deles não vale. Os traficantes não respeitam os direitos humanos e nem as deliberações da ONU. O governo tem atirado livros, mas só nos que já estão presos, para ajudar a reduzir a pena escrevendo resenhas. Então... "não é sem motivo que ela [a autoridade] traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal." (Romanos 13:1-8).
Ao contrário do que pensam alguns cristãos mais humanistas, essa "espada" a que o apóstolo Paulo se referia não era aquela do He-Man, de plástico, que meu filho ganhou na escolinha do pré, e quando chegou em casa tentou santificá-la dizendo que era a espada de Davi. Achamos graça e deixamos que ficasse com sua espada bíblica.
É que quando eles eram pequenos, não dávamos armas de brinquedo, e éramos também contra armas de verdade. Anos antes, morando no meio do mato e a seis quilômetros da cidade de Alto Paraíso, para enfrentar barulhos suspeitos no meio da noite eu abria a janela, soltava um rojão, e fechava. Como nunca fomos assaltados, só posso deduzir que os que tentaram morreram de susto. Ou de rir.
Mas a modernidade nos atropelou. Foi só nossos filhos crescerem um pouco e logo estariam jogando no computador, matando os adversários na pancada ou destruindo planetas inteiros com bombas atômicas e raios laser. Lembro-me de uma vez quando, da rua, escutei minha filha na torcida gritando para o irmão: "MATA, LUCAS, ATIRA! MATA ELE!!!".
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