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Como fui curado de meu vegetarianismo

Talvez você não saiba, mas nos tempos de faculdade me tornei macrobiótico vegetariano, e isso durou uns três anos. Começou com preocupação com a saúde, por não aguentar mais comer comida barata de boteco que estava fazendo eu perder o cabelo, e logo passou para a fase ideológica, antes de atingir a fase radical. Sim, já fui um promotor fanático da dieta.

Então minha ideologia de vida alternativa levou-me a morar no mato no interior de Goiás, onde lecionava numa escola de ensino médio. Lá fui curado de meu vegetarianismo ideológico, não por opção, mas por necessidade e imposição, antes mesmo de ver os efeitos da subnutrição aguda numa criança filha de alternativos vegetarianos como eu.

É fácil ser vegetariano e comer só pão integral na cidade grande, mas numa época quando você só encontrava grãos integrais se conhecesse o dono de algum moinho, tudo era mais complicado. Vegetais? Frutas? Legumes? Bem, lá não tinha um varejão na esquina para comprar essas coisas. Era possível encontrar alguma abóbora, banana, mandioca ou o que sobrasse do plantio de alguém para consumo próprio. Além disso, tinha o período das chuvas, quando a verdura "melava" e a galinha não botava. Uma vez por semana um caminhão parava na rua principal trazendo legumes de Brasília, mas era só.

Por absoluta falta de opção minha transição dietética e busca por proteína começou com sardinha em lata até eu sentir um aperto no estômago. Um dia ganhei linguiça caseira de uma aluna e saltei do peixe para a outra carne branca: a de porco. Achei que seria uma desfeita recusar um presente dado com tanto carinho, e enquanto sentia o aroma da fritura tive a certeza de que seria um caminho sem volta.

Carne fresca tinha uma ou duas vezes por semana. Você já comeu carne fresca? Eu pensei que tinha comido, mas na época o açougue de lá era só um balcão com uma balança daquelas de pendurar. A carne ficava exposta, pendurada em ganchos. Quem falou em refrigeração? Só tinha no inverno. Atrás do açougue ficavam os varais, que você nunca deve ter pensado ser uma palavra que vem mesmo de varas. Aquelas varas ali não eram para pendurar roupa, mas boi fatiado para produzir carne de sol. Além de formarem um movimentado aeroporto de varejeiras.

Então para ter carne fresca era preciso ficar sintonizado na Rádio Peão, que avisava que um boi ou porco passaria desta para uma melhor, para a panela, quero dizer. Aí corríamos todos para debaixo de uma árvore onde já estava o porco ou o boi amarrado, orgulhoso de ter atraído tamanha plateia. Primeiro vinha uma marretada na testa (frigoríficos usam marreta hidráulica ou choque elétrico). Depois a facada no sovaco do animal para chegar (acho eu) ao coração. O sangue vinha em seguida, em esguichos ritmados.

Em seguida as patas traseiras eram amarradas e o animal erguido numa corda por uma roldana pendurada na árvore e era aí que todos ajudavam a puxar para abrir o apetite. A sangria, que nada tinha a ver com vinho, era recolhida num balde para fazer chouriço. Enquanto isso o açougueiro esfolava, isto é, tirava o couro. Vigília em volta do corpo atraía gente de todo canto, cada um com uma vasilha para levar a carne. Às vezes eu escutava a notícia na rua e, para não perder o melhor naco, nem ia buscar vasilha, levava só meu indicador.

Você nunca comprou carne com o indicador? Primeiro eu apontava: "Aquele pedaço ali", depois usava o indicador para contar o dinheiro com a ajuda do polegar. Aí o açougueiro fazia um furo na carne, eu enfiava o indicador e caminha de volta para casa seguido de cãezinhos balançando a cauda e lambendo o sangue que pingava pelas ruas. Nesse tempo eu já tinha desistido do mato, onde morei por um ano e meio, e ido morar na cidade.

Espere, não terminei ainda: Eu falei em carne fresca, não falei? Quando chegava em casa o grande naco de carne era colocado sobre a pia e eu ficava assistindo os estertores da morte nos movimentos involuntários. Quando a carne parava de tremer era hora de ser cortada em bifes. Sim, carne verdadeiramente fresca não fica extática absorta em seu momento post-mortem, e nem é estática como falamos da rigidez cadavérica do rigor mortis. Carne fresca é dinâmica, curte um agito.

Mas e se eu não escutasse o aviso da Rádio Peão? Aí o jeito era me contentar com as pelancas que sobravam ou, em último caso, comprar a carne de sol do boi que morreu no particípio passado. Esta eu precisava saber limpar antes de cozinhar. Não que ela viesse suja para ser lavada ou com muita gordura para ser podada, mas também não vinha embalada a vácuo em plástico transparente e cheia de corante para ficar vermelha. Carne seca natural é escura, e era preciso antes passar a lâmina da faca de um lado e do outro para raspar o sal e as larvas das moscas, que aproveitavam a carne ao sol para berçário de suas proles. Era só bater a carne na pia para as larvinhas colocarem a cabeça para fora para saber o que estava acontecendo e... Vupt-Vapt!

Acha que a conversa está nojenta demais para antes do almoço? Então é hora de aprender que a larva de mosca sempre foi usada na medicina para comer carne putrefata de ferimentos e evitar gangrena. Larvas já salvaram muita gente da amputação, e só foram deixadas de lado com o advento da penicilina e outros antibióticos depois da Primeira Grande Guerra. Mas agora agora voltam à baila — e larvas bailam mesmo! — às vezes com resultados melhores que os dos antibióticos. Num site encontrei esta explicação para a terapia larval ou Larvo terapia:

"As larvas agem na ferida por meio de quatro mecanismos: removem o tecido necrosado (morto), rompem o biofilme bacteriano (uma comunidade de microrganismos extremamente organizada que interfere muito no processo de reparação da ulceração), promovem o crescimento de tecido sadio e eliminam bactérias que causam a infecção.".

Isso é bom demais, não concorda? Então quando aquela bela varejeira verde passar voando por você, não fique indignado. Uma ancestral dela pode ter salvo um ancestral seu da necrose causada por algum ferimento grave. E um dia uma descendente dela pode salvar você ou um descendente seu.

Mario Persona é palestrante de comunicação, marketing e desenvolvimento profissional. Seus serviços, livros, textos e entrevistas podem ser encontrados em www.mariopersona.com.br

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